O impacto da integração do terceiro fragmento ainda reverberava pelo corpo de Ethan como ondas invisíveis. A cada passo que dava após deixar a torre da mulher selada, sentia ecos de memórias que não eram suas. Vidas fragmentadas, emoções cruas. O peso da dor acumulada pelas eras agora fazia parte dele.
Mas havia algo mais.
Um sussurro constante, vindo de um lugar distante — como se um olho o observasse de longe, buscando uma brecha para se infiltrar. Era diferente dos outros fragmentos. Este parecia ter acordado algo, um elo com uma entidade que não fazia parte do Véu... nem da Entidade Original.
— Sente isso? — Ethan perguntou, mantendo os olhos no horizonte.
Ireth assentiu, com o semblante fechado.
— Estamos sendo caçados.
A trilha em direção à Floresta de Varnell era íngreme e envolta por um silêncio incomum. Nenhum animal se movia, nenhuma brisa soprava. A vegetação parecia suspensa no tempo.
— Você conhece esse lugar? — Ethan perguntou.
— A Floresta de Varnell é sagrada para os Xalem, um dos poucos povos que sobreviveram à Queda do Primeiro Véu. Eles protegem o fragmento escondido nas ruínas do templo de Sh'naara. Mas... não vão entregá-lo. Nem a nós, nem a Zareth.
— Então teremos que convencer. Ou lutar.
Ireth não respondeu. Seu silêncio dizia mais do que qualquer palavra.
Quando chegaram à borda da floresta, Ethan sentiu a mudança. O ar ficou pesado, mas não ameaçador. Havia uma presença antiga ali, diferente de tudo que já tinham sentido. Um tipo de consciência adormecida — ou apenas observadora.
— Não avancem. — disse uma voz feminina.
Do meio das árvores, surgiu uma mulher com pele dourada, olhos cobertos por uma faixa de linho, e roupas feitas de folhas vivas que pareciam se mover sozinhas. Ao seu lado, dois guerreiros empunhavam lanças de osso cristalizado.
— Sou Kaelya, guardiã da linhagem Xalem. Esta floresta reconhece o sangue, e o de vocês não é puro. Voltem. Ou enfrentem o julgamento da seiva.
— Não viemos roubar. — Ireth respondeu. — Viemos impedir o fim. O fragmento... precisa ser reintegrado.
— Reintegrado? — Kaelya franziu o cenho. — Vocês sabem o que esse termo significa? Cada fragmento reintegrado fortalece não só a Entidade, mas também o elo entre mundos. Vocês acham que isso trará salvação? Vocês estão apenas apressando a segunda ruína.
Ethan deu um passo à frente.
— Não estamos cegos pelo ideal. Mas há algo pior que a ruína: a estagnação. Zareth quer impor um novo mundo sob controle absoluto. Nós queremos permitir que ele escolha seu próprio caminho.
Kaelya ergueu o braço. As árvores se agitaram. Uma raiz emergiu do chão e parou a centímetros de Ethan.
— Então mostre sua verdade. Não com palavras, mas com memórias.
Antes que pudesse reagir, a raiz tocou o peito de Ethan. Um clarão o engoliu. Quando abriu os olhos, não estava mais na floresta.
Estava... em si mesmo.
Mas não exatamente.
Estava revivendo o momento em que recebeu o primeiro fragmento. O medo. A dúvida. Depois, a dor do segundo. A morte do guardião. A fúria de Veredya. A solidão do terceiro fragmento. A mulher sem nome, moldada na dor.
E então... algo novo.
Uma imagem que ele ainda não tinha visto.
Um trono. Feito de cristais negros. E alguém sentado nele.
Zareth?
Não.
Era Ethan. Mas mais velho. Mais frio. Com olhos vazios e um sorriso quase sereno.
— Não é um futuro fixo. — disse a voz de Kaelya em sua mente. — Mas é uma possibilidade. Toda dor absorvida também molda. Toda decisão tem um preço. Está pronto para pagar?
Ethan voltou para o presente com um arquejo. Suava frio.
— Estou. Porque se não fizermos isso... ninguém mais poderá.
Kaelya observou por longos segundos. Então virou-se para a floresta.
— Venham. A entidade os reconheceu. Mas saibam: no coração do templo, a própria floresta testará vocês. E nem eu poderei protegê-los.
O caminho foi longo, e quanto mais se aproximavam do templo, mais a vegetação ganhava vida. Árvores sussurravam entre si, como velhas testemunhas de eras passadas. Flores se abriam ao toque, e os ventos contavam histórias sem voz.
Ao chegarem às ruínas de Sh'naara, encontraram um templo semi-enterrado por raízes gigantescas. O símbolo do Véu estava cravado em sua entrada, mas alguém o havia cruzado com uma marca em espiral — a marca de Zareth.
— Ele já esteve aqui. — Ireth sussurrou.
— Ou deixou um aviso. — Ethan murmurou. — Vamos.
No interior do templo, tudo estava intacto. Era como se o tempo tivesse parado. No centro, sobre um altar de pedra envolto por vinhas douradas, havia o fragmento. Diferente dos outros, este vibrava com um tom verde-azulado, como se pulsasse com a própria essência da floresta.
Mas ao se aproximarem, o chão tremeu.
Do teto, desceu uma criatura feita de madeira e seiva cristalina, com olhos múltiplos e braços em espiral.
— Protetor de Sh'naara. — Kaelya disse atrás deles. — Ele foi criado pelo fragmento para impedir que este fosse tocado por mãos impuras. Vocês terão que vencê-lo... ou morrer tentando.
A criatura rugiu, liberando esporos venenosos. Ethan saltou para o lado, invocando sua espada de luz quebrada. Ireth recuou e começou a entoar um cântico que manipulava os ventos ao redor.
O combate foi brutal.
Cada golpe da criatura fazia as paredes tremerem. Ethan, mesmo mais forte com os fragmentos, tinha dificuldade em prever os movimentos do guardião. A cada ataque, raízes tentavam prendê-lo ao chão, enquanto os esporos corroíam sua resistência.
Ireth invocou uma rajada de vento cortante, arrancando um dos braços da criatura. Mas ele se regenerou quase que instantaneamente.
— Ele é alimentado pelo fragmento. — ela gritou. — Enquanto ele estiver ali, o guardião é imortal!
— Então temos que isolá-lo. — Ethan respondeu.
Usando sua conexão com os fragmentos, Ethan concentrou sua energia no altar. Canalizou o poder das dores absorvidas, das memórias quebradas, e lançou uma onda de energia contra o fragmento — não para destruí-lo, mas para envolvê-lo temporariamente numa cúpula de negação.
Por um instante, o vínculo entre o guardião e o fragmento se rompeu.
Foi o suficiente.
Ireth lançou seu ataque final: um turbilhão de lâminas de vento que perfurou o peito da criatura. Ethan se aproximou e cravou sua espada no núcleo de seiva. O guardião gritou — um som de madeira partindo e alma se dissolvendo — e caiu em pedaços.
O silêncio retornou.
Kaelya observava com olhos indecifráveis.
Ethan tocou o fragmento. Desta vez, a dor foi menor — mas a revelação, mais intensa. Este fragmento continha a memória da origem da Entidade.
Imagens vieram em flashes: um mundo anterior ao atual, onde o Véu era apenas uma ideia. Um ser de luz pura que se fragmentou por escolha, buscando experimentar o tempo, o amor, a dor... e se perdeu. A Entidade não era um deus. Era uma busca.
— Eles não nos observaram. Eles foram como nós. E depois... esqueceram quem eram. — Ethan murmurou.
Quando o fragmento se integrou, a floresta inteira se iluminou. Kaelya se ajoelhou.
— Vocês provaram sua verdade. Que a dor não os corrompeu. Ainda. Vão... há apenas mais dois fragmentos. Mas saibam: Zareth não os deixará alcançá-los. Ele já não está mais sozinho.
— O que quer dizer? — Ireth perguntou.
Kaelya olhou para o céu.
— Ele acordou o que dormia sob o mar. A entidade da reversão. Aquela que desfia o tempo e refaz histórias. Se ela os alcançar... nem o passado poderá salvá-los.