As estrelas pareciam mais próximas naquela noite. Como se o céu observasse, atento, cada passo dos viajantes. Ethan e Ireth caminhavam em silêncio sob a luz tênue de um novo firmamento, que parecia ter mudado desde a reintegração do segundo fragmento. O ar estava diferente — mais leve, e ao mesmo tempo carregado de tensão.
— Você percebeu? — Ireth perguntou, olhando o céu. — Alguma coisa... mudou.
— Sim. O equilíbrio está reagindo. A realidade está tentando se corrigir... ou se defender. — Ethan respondeu, com um olhar preocupado. — Mas ainda não sabemos de que lado ela está.
Após a restauração de Veredya, haviam seguido em direção ao Desfiladeiro de Theron, o local do próximo fragmento. Um lugar marcado por uma antiga guerra entre os Senhores do Eco e as Tribos Elementais. Hoje, restava apenas terra queimada e ventos que gritavam memórias.
Durante a viagem, Ireth passou a questionar algo que até então deixara em silêncio:
— Ethan... e se Zareth tiver razão?
Ele parou de andar. O nome daquele homem fazia o próprio ar parecer mais denso.
— Racionalmente, algumas ideias dele fazem sentido. Mas o que ele propõe não é reconstrução. É aniquilação. Não há espaço para vida em um mundo moldado apenas por uma única vontade. Mesmo que fosse a dele.
Ireth assentiu, mas algo em seu olhar indicava que ela não estava totalmente convencida. Era como se visse além do discurso. Como se uma parte dela — talvez a mais ferida — compreendesse a dor que movia Zareth.
Ao chegarem ao limite do desfiladeiro, encontraram uma construção em ruínas. Era uma torre inclinada, parcialmente engolida pelas pedras ao redor. No topo, uma energia turquesa girava lentamente como um coração pulsando.
— Ali está o fragmento. — Ethan disse. — Mas... sinta isso. Há algo preso ali junto com ele. Algo antigo.
— Parece... dor. — Ireth disse, estremecendo.
Quando entraram na torre, não encontraram resistência. Apenas silêncio. Paredes pintadas com símbolos esquecidos. Runas em línguas que nenhum dos dois conhecia completamente. E então, no salão central, uma figura estava acorrentada.
Não uma criança. Não um guerreiro.
Uma mulher. Com longos cabelos brancos como marfim, e olhos que oscilavam entre o vazio e a luz. Ela flutuava a poucos centímetros do chão, envolta por correntes feitas de sombra líquida. O fragmento da entidade palpitava em seu peito, como um cristal embutido.
— O que é isso...? — Ireth sussurrou.
Ethan se aproximou, atento a qualquer armadilha. Mas a mulher não se movia.
— Ela... não é uma guardiã. Ela é o fragmento. Ou melhor, foi moldada em torno dele. Alguém tentou encapsular a essência da entidade em um corpo humano. E falhou.
De repente, a mulher abriu os olhos. O salão estremeceu. Vozes sussurraram em todos os cantos, como se cada pedra tivesse uma memória a compartilhar.
— Eu... lembro... — ela murmurou. — Eu não queria nascer. Eu fui moldada de dor. Criada para selar... algo maior. Algo que nem eu compreendia.
Ethan sentiu a verdade oculta por trás daquelas palavras.
— Você é um vaso. Criado por... Zareth?
— Não. Por algo... anterior. — Ela moveu levemente o rosto. — Por uma linhagem esquecida. Aqueles que não aceitavam o Véu nem as Entidades. Um culto de pureza. Eles queriam criar um ser 'vazio', capaz de conter as sobras da entidade perdida. Me forjaram na ausência de emoção. Mas... eu quebrei. Senti demais. E me tornei... algo a ser esquecido.
Ireth olhou para Ethan com pesar.
— Ela está morrendo. Não tem como manter a forma muito mais tempo. O fragmento está devorando o que restou dela.
A mulher sorriu, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Eu sei. Por isso... eu esperei. Por vocês. Para libertarem o que eu não pude conter.
Ethan hesitou.
Reintegrar aquele fragmento significava absorver toda a dor que havia sido armazenada nele. Mas também significava libertar uma alma aprisionada. O dilema era moral. Espiritual. Mas o tempo estava se esgotando.
Ele estendeu a mão.
— Você está pronta?
A mulher assentiu. E tocou seus dedos nos de Ethan.
O impacto foi instantâneo.
Milhares de vozes gritaram em uníssono, invadindo a mente de Ethan. Era como mergulhar em um oceano de lembranças traumáticas — guerras esquecidas, traições de irmãos, perdas que nunca tiveram consolo. Ethan caiu de joelhos, tremendo. Mas resistiu. O fragmento entrou em seu peito como uma chama fria, e então... silêncio.
A mulher caiu, finalmente livre. Um último suspiro escapou de seus lábios.
— Obrigada... por lembrar que... dor também é... vida...
O corpo dela se desfez em partículas de luz, unindo-se ao Véu.
Ireth se ajoelhou ao lado de Ethan, segurando-o.
— Você está bem?
— Não... completamente. Mas estou vivo. E ela também. De alguma forma... ela também vive agora em mim.
— Três fragmentos. — Ireth disse. — Estamos chegando perto.
Mas mal sabiam eles que algo havia mudado em outro ponto do mundo.
Nas profundezas da Torre do Sussurro, Zareth se ajoelhava diante de um altar coberto por ossos e cristais escuros. A luz ali era antinatural. E no centro do altar, algo começou a se formar.
Uma figura humanoide, mas sem rosto. Apenas uma máscara feita de vidro rachado e marcas entalhadas em sua pele.
— Meu campeão... — Zareth sussurrou. — Finalmente. A Entidade da Reversão. Aquela que caminha ao contrário do tempo.
O ser ergueu a cabeça lentamente.
— Me invocaste... não com palavras, mas com destino. Quem devo destruir, Zareth?
— Ethan. E todos que ousarem interferir.
— Assim será.