O vento que soprava sobre a Cordilheira de Shivan já não carregava apenas o frio da altitude. Com a Coroa da Harmonia nas mãos de Ethan, algo sutil havia mudado no ar — como se os próprios elementos estivessem observando, esperando. O templo atrás deles, agora silencioso, parecia guardar um segredo a mais do que o artefato que protegiam.
Enquanto desciam a montanha, Elyss mantinha os olhos atentos nos céus. A neblina não era natural. Pairava com um peso que pressionava os ossos, tornando cada respiração mais lenta.
— Está sentindo? — ela perguntou em voz baixa.
Ethan assentiu.
— Alguém nos observa.
Não era apenas uma sensação. Era certeza. A harmonia emanada pela coroa parecia entrar em conflito com outra presença — algo dissonante, perturbador, como uma nota errada em uma melodia perfeita. E essa nota os seguia, invisível, mas constante.
Quando chegaram à base da montanha, perceberam. O céu havia escurecido além do normal. E então, sem aviso, o chão estremeceu.
Do alto de um penhasco, uma figura solitária os observava. O manto negro esvoaçava, contrastando com os flocos brancos de neve que caíam. Os olhos, ocultos por um capuz, brilhavam em um vermelho profundo. Na mão direita, ele carregava uma lâmina curva feita de um metal escuro que parecia absorver a luz.
Elyss colocou-se em guarda imediatamente.
— Quem é você?
A figura não respondeu de imediato. Desceu com passos lentos, cada movimento carregado de uma intenção silenciosa. Ao tocar o chão, o ar ao redor pareceu vibrar.
— Vocês quebraram o primeiro selo — disse, a voz baixa e aveludada, como um sussurro que ecoava dentro do crânio. — A harmonia foi perturbada. O Equilíbrio começa a ruir.
Ethan empunhou a lança.
— Se veio nos parar, está atrasado. O artefato já nos escolheu.
O estranho riu, e o som não foi natural — era distorcido, quase... rachado.
— Eu não vim impedir. Vim avisar. Vocês acham que estão reunindo Fragmentos para restaurar o mundo. Mas não percebem: cada um deles é uma chave. E as chaves não abrem apenas portas de poder... elas libertam coisas enterradas por um motivo.
Elyss estreitou os olhos.
— Quem é você?
A figura retirou o capuz. O que se revelou era algo entre um homem e uma sombra viva. A pele era pálida demais, quase translúcida, os olhos vermelhos sem pupilas. No centro da testa, um pequeno símbolo queimava em chamas negras: um olho vertical, com três garras ao redor.
— Meu nome não importa. Mas, se precisam de um título, podem me chamar de Kareth, o Eco do Véu. Sou o último portador do Fragmento da Desordem. E jurei que nunca permitirei que o Coração de Ankar seja aberto novamente.
O silêncio que se seguiu foi denso.
— Está tentando nos intimidar? — perguntou Ethan.
Kareth sorriu. Seus pés flutuaram um centímetro acima do chão, e sua lâmina girou lentamente.
— Não. Estou mostrando a vocês o futuro.
Com um gesto, o chão se partiu. Da fenda, criaturas começaram a emergir — sombras com corpos deformados, múltiplos olhos, membros que pareciam desenhados por uma criança em pesadelo. Elas não corriam. Deslizavam. Os sons que faziam não eram naturais: gemidos em reverso, como se falassem para trás.
— Corra — disse Elyss.
Mas Ethan não correu.
Ele girou a lança. A luz da Coroa envolveu seu braço, e uma onda de energia varreu os primeiros inimigos, dissolvendo-os. Elyss o seguiu, cortando com movimentos rápidos, quase dançando entre os monstros. Mas eram muitos. Para cada um que caía, três surgiam.
— Eles não param! — gritou Elyss. — Não são reais!
— São fragmentos! — Ethan respondeu. — Imagens criadas a partir da Desordem!
O combate se estendeu por minutos que pareciam horas. Ao final, ambos estavam ofegantes, cercados por restos de névoa negra que se dissipavam lentamente. Mas Kareth não se movera um centímetro.
— Vocês resistiram — disse ele. — Interessante. Então talvez estejam prontos para ver.
Com um estalar de dedos, uma fenda se abriu no ar. Dentro dela, uma visão: o mundo, consumido por chamas negras, os sete Fragmentos flutuando acima de um trono de ossos. Ao redor, uma figura encapuzada segurando um cetro partido — olhos vazios, poder absoluto.
— Este é o futuro se falharem. E acreditem... todos falham. Eventualmente.
Com outro gesto, Kareth desapareceu, levado por sombras que se dobraram sobre si mesmas como uma cortina sendo fechada.
O silêncio retornou, mas agora era mais pesado.
Elyss se sentou em uma rocha, exausta.
— Quem... ou o que era aquilo?
Ethan guardou a lança. A Coroa brilhava em sua bolsa lateral, como se pulsasse com inquietação.
— Um aviso. E uma ameaça. E talvez... um reflexo do que podemos nos tornar.
— Acha que ele dizia a verdade?
— Acho que parte, sim. Mas a verdade pode ser uma arma. E mentiras, às vezes, protegem segredos maiores.
Horas depois, em uma floresta ao sul
A dupla havia encontrado abrigo em uma caverna natural. Um pequeno fogo aquecia o local, embora nada pudesse aquecer completamente os pensamentos que os atormentavam.
Elyss limpava sua espada, atenta a cada detalhe. Ethan fitava o mapa mágico. O próximo Fragmento estava em uma cidade esquecida no fundo de um lago cristalino — Kael'Daran, a cidade submersa.
— Nunca ouvi falar desse lugar — comentou ela.
— Porque ele desapareceu há quatrocentos anos, junto com toda a sua população. Dizem que foi engolida pelas águas em uma noite de tempestade. Mas alguns textos antigos dizem que o Fragmento da Clareza foi selado ali.
Ela olhou para ele, séria.
— Vai seguir mesmo assim?
— Não temos escolha. E agora sabemos que não somos os únicos em busca deles. Kareth foi só o primeiro.
Elyss ficou em silêncio por um tempo.
— E se encontrarmos outros como ele? Mais fortes? Mais cruéis?
Ethan olhou o fogo.
— Então vamos continuar. Fragmento por Fragmento. Até que só reste um caminho: vencer ou morrer tentando.
O silêncio tomou conta novamente, e a caverna pareceu respirar junto deles.
O caminho à frente era escuro, mas a luz da Coroa ainda brilhava, insistente. Era o começo da jornada mais difícil de todas — e nenhum deles estava disposto a recuar.