Cherreads

Chapter 2 - Capítulo 2 – Aquilo que Dorme nas Cinzas

O amanhecer chegou silencioso em Pedra Baixa, mas para Rayn Ardell, uma noite ainda não havia acabado.

A forja estava em ruínas. Não destruído totalmente, mas ferido — como se tivesse sido atingido por algo que o mundo esqueceu como nomear. As brasas ainda brilhavam, e a runa no chão continuava viva, palpitando como um segundo coração sob os pés. Rayn não dorme. Sentara-se ao lado dos escombros, os olhos fixos no anel em seu dedo e no estranho símbolo que agora marcava sua mão como uma cicatriz de luz.

— Isso não vai sumir, vai? — Disse em voz baixa.

Orlen, o velho mestre, estava atrás dele, encostado em uma viga ainda de pé, braços cruzados. Estava calado desde que retornou, horas atrás. Como se você soubesse que certas perguntas precisariam do tempo para nascer. E outras, tempo para serem respondidas.

— Não — disse por fim. — Não vai sumir. E nem deveria.

Rayn olhou para ele. A testa franzida, os olhos duros, mas havia algo mais ali. Um peso no olhar. Um silêncio que dizia: "Eu já vi isso antes."

— Você sabia o que havia lá embaixo. Sempre soube.

— Sabia... parte. — Orlen empurrou-se da viga e caminhou lentamente até os destroços da sala oculta. — Não sabia que o selo ainda estava ativo. Achei que a relíquia já havia sido desligada. Como tantas outras.

Rayn respirou fundo, tentando ignorar a sensação de que o mundo havia começado a girar para um lado que ele não conseguia acompanhar.

—O que era aquilo ? Aquela... coisa?

Orlen o encarou.

— Um Fragmento do Vazio. Eco de algo antigo demais pra ser explicado numa única respiração. Essas coisas costumavam dormir sob a terra, aprisionadas pelos Guardiões.

— Guardiões... — repetiu Rayn, como se estivesse saboreando o nome pela primeira vez. — E agora você vai me dizer que eu sou um deles?

— Não. — O velho se mudou e se agachou diante dele. — Não sou eu quem vai te dizer isso. É o mundo.

Depois de um banho frio, pão seco e chá amargo, Rayn enviou-se à mesa com Orlen. O anel ainda pulsava em seu dedo, quente como um carvão queimava.

— Então… o que acontece agora?

Orlen se recostou, encarando o teto da casa que resistiria melhor que a forja.

— Você tem duas opções. Ficar aqui e fingir que nada aconteceu. Ou siga a trilha que o anel abriu.

Rayn bufou.

— E o que eu ganhei com isso?

— Verdades que talvez não queira ouvir. Lutas que você não pediu. Dor, solidão, riscos. — Ele o encarou. — Mas também respostas. Sobre o que você é. Sobre por que foi escolhido. E, talvez, uma chance de mudar o rumo desse mundo.

Rayn desviou o olhar. Um silêncio pesado foi instalado entre eles. Ele pensou em tudo: nos anos em que martelou metal até os braços doerem, nos dias em que sonhou com algo além daquela vila esquecida, nas noites em que desejou ser alguém… só para agora descobrir que era alguém. Mas não sabia o que isso fez.

— E se eu falhar?

— Você não é o primeiro a perguntar isso. Nem será o último. — Orlen sorriu pela primeira vez em dias. — Mas talvez seja o primeiro a conseguir.

Ao meio-dia, Rayn estava pronto.

Não sabia dizer exatamente o porquê, mas algo dentro dele havia mudado. Talvez fosse o peso da escolha. Talvez fosse o anel. Ou talvez fosse o fato de que, pela primeira vez, ele sentia que pertencia a algo maior que sua própria rotina.

Ele levava apenas uma mochila com mantimentos, uma muda de roupa e sua primeira espada — a que ele mesmo forjara, meses atrás, com orgulho juvenil. Nem era muito boa, mas era dele. E agora, era um símbolo de onde começou.

Orlen entregou-lhe um mapa velho, rasgado nas bordas.

— Esse caminho leva até as ruínas de Kael-Vharn. Lá tem respostas. Ou, pelo menos, mais perguntas bem-feitas. E talvez… um Guardião.

Rayn ergueu as sobrancelhas.

— Um? Então ainda existem?

— Alguns. Escondidos. Silenciosos. Ou… mortos. — O velho suspirou. — Não espere uma recepção calorosa.

Rayn engoliu em seco, mas assentiu. Estava pronto. Ou fingia muito bem.

Antes de sair, Orlen fez algo inesperado: tirou de dentro do manto um medalhão de bronze, com o desenho de uma chama entrelaçada em espinhos.

— Era do meu irmão. — Ele entregou com cuidado. — Ele foi um Guardião. Um verdadeiro.

Rayn pegou o medalhão como se fosse feito de vidro. Não sabia o que dizer, então não disse nada. Só assentiu com os olhos úmidos.

E então, partiu.

A estrada era poeirenta e quieta. A vila desapareceu atrás das colinas como um sonho antigo. Rayn caminhava em silêncio, ouvindo o ranger dos galhos e o canto distante dos corvos. Cada passo parecia empurrá-lo mais fundo em algo que ainda não compreendia — como se o mundo à sua volta estivesse acordando com ele.

E foi na segunda noite, acampado perto de uma clareira, que conheceu a primeira companheira de sua jornada.

Ela surgiu como um sussurro entre as árvores — uma figura baixa, vestida com um manto cinzento, passos leves como folhas.

Rayn ergueu a espada, por instinto.

— Se for uma criatura do Vazio, aviso logo: ainda não sei usar isso direito, mas vou tentar, tá?

A figura riu.

— Relaxa, espada curta. Eu só vim pegar um pouco de lenha… mas parece que esbarrei em algo bem mais interessante.

Ela se aproximou. Tinha olhos cor de âmbar, vivos como fogo. A pele bronzeada pelo sol e uma postura que denunciava treino — ou sobrevivência. Carregava uma adaga na cintura e uma mochila com símbolos tribais.

— Meu nome é Liora. E você… tem um anel muito, muito chamativo.

Rayn hesitou.

— E você… parece saber mais do que deveria.

Liora sorriu, abaixando-se perto da fogueira.

— Eu caço sinais. E você brilha como um deles. Então me diz, "espada curta": por que está carregando uma relíquia adormecida no dedo?

Rayn a encarou, e pela primeira vez sentiu algo novo: ela não tinha medo dele. Nem do que ele carregava.

— Porque ela me escolheu — respondeu. — E, pelo que parece, isso tem consequências.

Liora riu de novo, jogando um graveto na fogueira.

— Então somos dois. O mundo está cheio de consequências ultimamente.

Ela está na mão.

— Que tal a gente descobrir isso juntos?

Rayn olhou para a mão paralela. Pensou no anel. Nada de medalhão. Sem mapa. Pensei que talvez ninguém aguentasse isso sozinho. E, pela primeira vez, aceitei a ideia de não tentar.

— Juntos, então.

E assim, sob o céu estrelado e o murmúrio da floresta, a jornada de Rayn Ardell realmente começou. Com cinzas nos ombros, faíscas nos dedos… e uma chama ainda pequena no coração.

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