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Manhã seguinte — Na estrada
O sol ainda se espreguiçava entre as copas das árvores quando partiram da estalagem. O ar estava fresco, e a luz dourada atravessava a névoa, dando à floresta um aspecto encantado.
Kátyra cavalgava ao lado de Tharion, e o menino, empoleirado na sela diante dela, balançava as perninhas com impaciência.
— Estou cansado — resmungou ele, com um suspiro dramático. — Minhas pernas estão entediadas.
— Entediadas? — Tharion lançou um olhar divertido. — Achei que pernas só andassem.
— As minhas pensam. E pensaram que querem voltar pro castelo. Lá tem doces. Doces de verdade! — o menino virou-se para Kátyra. — Mãe… eu quero aquele com calda brilhante! O que brilha igual armadura de cavaleiro!
Kátyra riu, apertando-o com carinho.
— Você quer dizer o doce de cristal de açúcar?
— Esse mesmo! E o de pétalas azuis! E o pão fofo com cobertura de mel de montanha! — Ele fez uma pausa, ofendido. — E por que aqui ninguém me chama de "príncipe"?
— Porque aqui todo mundo sabe que você é um menino resmungão, não um príncipe mimado — provocou Tharion.
O pequeno arregalou os olhos, fingindo escândalo.
— Eu sou os dois! E não gosto de andar no mato! Quero um tapete de nuvens e alguém que me carregue!
Kátyra cobriu a boca para conter a risada, enquanto Tharion fingia pensar alto:
— Tapete de nuvens… acho que só os grifos carregam isso. Podemos chamar um, mas ele pode te confundir com um ratinho e levar pro ninho.
— Não sou um rato! — o menino protestou com uma expressão tão indignada que os dois adultos não resistiram e riram alto.
Ele cruzou os bracinhos, emburrado, e murmurou:
— Vocês dois ficam rindo de mim… Mas eu sou importante. Quando eu crescer, vou ter uma coroa e mandar vocês dois irem dormir cedo.
Kátyra o beijou no alto da cabeça.
— Quando você crescer, espero que ainda goste de doces com calda brilhante. E que seu coração nunca perca essa coragem birrenta.
Tharion, por sua vez, cutucou o menino com um sorriso:
— E se você mandar a gente dormir cedo, nós vamos obedecer… talvez. Só se tiver pão fofo com mel.
O menino tentou esconder o sorriso, mas não conseguiu. E seguiram pela estrada entre gargalhadas, como uma família que, apesar de toda dor e guerra, começava — aos poucos — a se reconstruir.
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Horas depois — Na encruzilhada das Árvores Côncavas
Já passava do meio-dia quando o trio avistou uma clareira incomum: três árvores antigas, ocadas e retorcidas, formavam um arco natural sobre a estrada. Na base das árvores, um velho marco de pedra coberto por musgos exibia runas ancestrais quase apagadas pelo tempo.
Tharion puxou as rédeas.
— Eu conheço esse lugar… dizem que aqui as árvores sussurram nomes esquecidos.
Kátyra estreitou os olhos. — Magia antiga?
— Magia viva — respondeu ele, com um certo respeito. — Isso aqui é um Véu. Um ponto onde os mundos quase se tocam.
O menino olhava fixamente para o marco de pedra. Seus olhos brilhavam, e ele murmurou:
— Tem alguém sussurrando…
Tharion e Kátyra trocaram um olhar tenso.
— O que você está ouvindo, pequeno? — Kátyra perguntou, descendo do cavalo.
— Eles falam meu nome… mas não como vocês falam. Falam como se fosse… antigo. — Ele apontou para as runas. — Dizem que "ele ainda vive".
Tharion ajoelhou-se diante do marco e tocou as inscrições.
— Isso aqui é idioma dos Bardaxas. Metade perdido. Metade escondido.
Kátyra se aproximou, olhando com atenção. — O que diz?
Tharion leu em voz baixa:
— Quando a criança da linhagem partida cruzar o Véu, a sombra e a luz se inclinarão diante dele. Um só corpo. Duas heranças. E o mundo tremerá.
Silêncio.
O menino olhou para os dois e perguntou, com um tom curioso demais para sua idade:
— Por que eu tenho sonhos com fogo e água ao mesmo tempo?
Tharion se levantou lentamente, o rosto sério. Kátyra se aproximou do filho e o abraçou forte.
— Porque você é feito de duas forças muito antigas, meu amor. E os antigos… estão começando a notar.
Nesse momento, uma brisa estranha soprou pelas árvores, e o marco brilhou por um instante com luz azulada, antes de apagar.
Tharion olhou ao redor, com a mão no cabo da espada.
— É melhor seguirmos. Esse lugar já viu demais por hoje.
E assim partiram, com o menino calado, pensativo, como se uma voz distante ainda murmurasse em seus ouvidos. E, atrás deles, as árvores côncavas voltaram ao silêncio — mas não ao esquecimento.
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