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Capítulo — "Entre o Fogo e a Coroa"
O sol ainda não havia nascido quando Kátyra selou sua montaria sob o manto cinzento da madrugada. Com um vestido leve escondido sob uma capa escura, atravessou os portões laterais do Palácio do Norte como uma sombra. Apenas Lythra, sua égua , a acompanhava — silenciosa como a decisão que pulsava em seu peito.
As Terras Baixas ainda dormiam quando ela chegou à taverna de madeira escura que ficava entre ruínas e fumaça. Tharion estava no segundo andar, jogado numa cama desfeita, o corpo ainda cheirando a álcool e brasa, cicatrizes novas no braço e a expressão carregada como o céu antes de um trovão.
Ela subiu sem pedir licença.
Ele a viu na soleira e arregalou os olhos.
— Você...? — murmurou, levantando-se devagar. — Veio fugir comigo?
Kátyra não respondeu de imediato. Caminhou até ele, tirou a capa molhada do orvalho e se aproximou. O silêncio era denso, mas não frio. Quando ela o abraçou, não havia palavras — apenas mãos que se reconheciam, respirações entrecortadas e um instante de paz desesperada no meio do caos.
As horas que se seguiram foram intensas e lentas, como se o tempo tivesse se curvado para eles. O mundo lá fora parecia um mito distante. E naquele quarto pequeno e empoeirado, Kátyra se entregou a Tharion como se tudo fosse acabar ao amanhecer. Porque no fundo... ela sabia que era isso mesmo.
Depois, envoltos apenas pelos lençóis e pela penumbra, Tharion a olhou como quem tenta guardar um sonho prestes a desaparecer.
— Então é isso? Você vai voltar. — sua voz estava baixa, sem raiva, mas pesada.
— Sim. — ela respondeu, sem rodeios. — Eu precisava de você esta noite. Mas amanhã... tenho que estar no altar.
— Você se ouve, Kátyra? — ele se levantou, andando pelo quarto como uma fera enjaulada. — Você fala como se fosse um sacrifício inevitável. Como se ser estuprada, usada como moeda política, humilhada publicamente, fosse apenas parte do caminho de uma rainha!
Ela o encarou com olhos marejados.
— Você acha que é fácil pra mim? Você acha que eu não sonhei mil vezes com uma fuga ao seu lado? Mas meu reino não vai sobreviver se eu sumir agora. A Casa do Grifo seria acusada, os Jeangles massacrados, meu avô deposto. Tudo cairia em guerra.
Tharion parou. Seus punhos cerraram, e quando falou novamente, sua voz era firme, sem hesitação.
— Se você sair por aquela porta pra voltar pra ele, nunca mais me procure. Nunca. Eu não sou sombra pra te esperar. Não sou consolo. E não quero te ver nos salões das cortes fingindo que isso aqui nunca aconteceu.
— Eu não estou fingindo. Eu amei você esta noite. Amo você desde antes de entender o que era o amor. Mas eu também sou herdeira do Norte. E você não pode me pedir pra ser só mulher quando sou também guerra, linhagem e promessa.
Ele respirou fundo. Olhou para ela como quem tenta memorizar o último pôr do sol.
— Então vai. — disse ele. — Vai antes que eu implore pra você ficar.
Ela se vestiu em silêncio. Na porta, olhou para trás. Seus olhos encontraram os dele — mas não disseram adeus.
E partiu.
O dia já nascia, tingindo de dourado os telhados das Terras Baixas, enquanto o coração de Kátyra carregava o peso de todas as escolhas que não pôde fazer.
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